A Palestina e os Comuns: Ou, Marx e a Musha’a

Pedro Silva
26 min readSep 1, 2024

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Peter Linebaugh

Ürfan1917 — CC BY-SA 4.0

Em 1958, o diretor assistente da Escola de Gramática de Karachi (Paquistão), fez uma leitura bíblica na assembleia matinal. A leitura, de Atos 17:23 falava da declaração de Paulo ao ver um monumento em Atenas ao deus desconhecido. “Ora, o que vocês adoram sem conhecer, este é o que anuncio a vocês”. Nesse ponto eu, aos 17 anos, gritei para todos ouvirem: “Comunismo!”

Como filho dos impérios americano e britânico, eu tinha chegado a essa conclusão rebelde dois anos antes, na Escola Secundária Americana de Frankfurt. Com base no estudo do “Manifesto Comunista” que eu conduzi na biblioteca do clube de oficiais no prédio da I.G Farben, pude responder a essa questão formulada na Ágora ateniense por um homem palestino.

Eu abordo a guerra na Palestina não como um acadêmico árabe, nem como hebreu. Nem mesmo como alguém que tenha conhecimento de outras formas de vida da região — como a azeitona, amêndoas, figo, frutas cítricas, ovelhas, algodão ou grãos como o trigo. Eu venho como um estudante com uma admiração de longa data pelas tradições radicais, abolicionistas e antinomianas: Jesus e os profetas, Karl Marx, Gerard Winstanley, Thomas Spence, Olaudah Equiano, a IWW¹, Frederick Douglass, Shunryu Suzuki, Elizabeth Poole, Ann Setter, Ivan Illich, Malcolm X, William Blake, Silvia Federici, E.P. Thompson, Robin Kelley, Manuel Yang, Michaela Brennan, Midnight Notes, CounterPunch e Retort. Então me tornei um historiador de todos os citados acima, com particular interesse nos comuns. Como Marcus Rediker e eu dissemos na introdução da tradução árabe do nosso “Many-Headed Hydra”, Heródoto, o “avô da história” explicou que a Palestina ficava entre a Fenícia e o Egito.

Além de ir para Atenas, uma casa da filosofia (philia = amor, Sophia = deusa da sabedoria), o apóstolo Paulo foi a encontros onde todos “compartilhavam tudo o que tinham” (Atos 4:32). O jubileu é outra coisa bíblica com a qual me identifico porque eu amo seus princípios de devolução da terra, liberdade imediata, fim do trabalho, perdão das dívidas e descanso para a mãe Terra. Me parece uma bela combinação de revolução e relaxamento. Paulo se tornou um seguidor de Jesus, que fora expulso de sua cidade natal e quase morto por proclamar um Jubileu. Ele reivindicava descanso e perdão. A única base econômica para essa coisa são os comuns. A luta na Palestina nos ajuda a ver isso.

Eu acredito que a musha’a (terras agricultáveis de propriedade comunitária), como práticas similares mundo afora, nos ajudam a pensar um mundo baseado em condições justas de mutualidade, como quer que você chame: comunismo verdadeiro, comunidade cooperativa, os bens comuns. O pensamento renovado sobre os bens comuns nasceu de lutas contra os novos cercamentos da era neoliberal, inspirado por práticas comunais de comunas autônomas zapatistas em Chiapas e sua defesa do ejido. Os bens comuns são agora entendidos como uma ruptura conceitual chave para informar visões e caminhos para futuros pós-capitalistas. Os bens comuns marcam uma fuga radical dos fracassos e legados paralisantes dos socialismos estatistas modernistas.

Eu devo escrever sobre a musha’a, uma forma palestina de propriedade da comun terra, bens comuns, que otomanos, britânicos e israelenses tentaram destruir. A musha’a inclui a propriedade coletiva, trabalho cooperativo e redistribuição periódica. Esses princípios, também encontrados nas primeiras promulgações de cancelamento de dívidas, liberdade da servidão e restauração da posse de terras. Além do jubileu, Enmetena, governante de Lagash, abraçou esses princípios por volta de 2400 A.C, que evoluíram para proclamações gerais de anistia. A musha’a era também uma instituição defensiva contra o medo de taxação e recrutamento militar pelas autoridades otomanas.

O significado planetário da Palestina é tripartite: primeiro, sua geografia a situa na conjunção de três continentes, Ásia, África e Europa, e das águas entre eles. Segundo, as extrações do solo palestino e de seu subsolo (grãos, minerais, petróleo e gás). Finalmente, o significado da Palestina para a cristandade, o islã e o judaísmo. Três grandes religiões, três grandes continentes e economias originais de cultivo, mineração e perfuração da terra, fazendo os modos de produção do “crescente fértil” ao petróleo presente, com suas terríveis perturbações planetárias. A luta pela libertação da Palestina tem amplitude geográfica e profundidade histórica, o que explica porque é considerada a “alma das almas de todas as nossas lutas”. O mundo inteiro percebeu sua importância.

Para introduzir ainda mais o assunto, apesar do risco de passar do sublime contemporâneo à antiguidade ridícula, vamos nos atentar a um artigo publicado em 20 de janeiro de 1890, no Instituto Vitoriano em Londres, por James Neil. Ele explica como, no sul da Palestina, o solo arável era dividido em lotes. Segundo ele “as pessoas que se propõem a trabalhar a terra se dividem em grupos e o chefe de cada grupo sorteia uma seção da terra proporcional ao tamanho do grupo. Cada seção tem terras de diversas fertilidades e qualidades. Essas seções são subdivididas pela medida de uma vara para gado, ou uma linha chamada habaleh, contraparte da linha de medição (conforme as) Escrituras. Os fazendeiros, nessas regiões, preferem esse método de divisão comunalista [communistic no original] à propriedade em regime de taxação simples”.

O “regime de taxação simples” é uma formulação feudal, um termo legal do inglês para propriedade privada: você pode usar ou abusar, legar ou alienar, pode vender e pode excluir os usos de outras pessoas. O direito romano se refere a fructus, abusus e usus — uso, frutos e abusos. A ideia de propriedade individual, exclusiva de terra é, segundo Andro Linklater, a “mais criativa e destrutiva força na história escrita”.

O Fundo de Exploração da Palestina foi fundado em 1865 e produziu pesquisas e etnografias da Palestina Otomana. Era uma operação Anglicana, financiando arqueólogos e clérigos. “Nós vamos aplicar as regras da ciência” disse o Arcebispo de York na Abadia de Westminster na fundação do fundo “a uma investigação dos fatos concernentes à Terra Santa”. O Quarterly Statement of the Palestine Exploration Fund, em abril de 1891 inclui na sua pesquisa da propriedade da terra e agricultura na Palestina: “(…) Na Palestina meridional, e em alguns outros distritos, a terra é comum a todos os habitantes de uma aldeia e porcionada em tempo determinado aos cultivadores individuais de acordo com sua habilidade no cultivo, cujo padrão é o número e a força do gado usado para arar. Tais terras são conhecidas como musha’a”.

Em 1865, além do Fundo de Exploração da Palestina, Cristãos evangélicos na Inglaterra formaram o Instituto Victoria para defender “as grandes verdades reveladas na Sagrada Escritura… contra a oposição da assim chamada ciência”. Seus líderes eram cristãos sionistas. Os bens comuns e o comunismo eram facilmente conectados na mente da Igreja da Inglaterra. Em contraste com o jubileu e outros textos bíblicos, os artigos 38 e 39 da religião declara simplesmente que “os bens e riquezas dos cristãos não são comuns no que tange a direito, titularidade e posse…”. Vamos olhar mais atentamente para isso, considerando a musha’a e o comunismo.

Em conjunto com as práticas beduínas de pastagem comum, a musha’a como agricultura baseada nas aldeias era outra versão da propriedade comum da terra e era coletivamente possuída pela aldeia. Os membros da aldeia, individualmente, eram donos de parcelas (ahsahm) nos direitos de uso. Esses incluíam o direito a arar, à semeadura, ao cultivo e à colheita. O celeiro de debulha, como a terra, era de propriedade comum. Em segundo lugar, a musha’a permitia a redistribuição e equalização das ahsahm a diferentes grupos familiares em intervalos de um a cinco anos. Esses direitos eram hereditários, determinados pelos desejos e necessidades do cultivador.

Quando James Reid falou de “divisão comunal” em contraste com o regime de taxação simples, o que isso significava? O espectro do comunismo assombra não só a Europa, como Karl Marx e Friedrich Engels escreveram no Manifesto Comunista (1848), mas também a Palestina, segundo James Reid. Ao Instituto Vitoriano, ele escreveu “nesse sentido, a teoria dos comunistas pode ser resumida em uma simples frase: abolição da propriedade privada”. A que sentido Marx e Engels se referem?

Eles falavam do emprego da propriedade como meio de exploração de outros, o capital. Marx elaborou sua compreensão do comunismo anos mais tarde, quando sua Crítica do Programa de Gotha foi publicada, em 1891 — mesmo ano em que Reid lia seu artigo para os acadêmicos do Império. Aqui ele repetiu a definição comum entre os revolucionários de 1848 e cujo sentido se originou antes com Graco Babeuf e a Revolução Francesa. “De cada um de acordo com sua capacidade, a cada um de acordo com sua necessidade”. O princípio se aplica à musha’a, na qual as capacidades e necessidades são definidas coletivamente. O Comunismo e o bem comum começam a se sobrepor.

A musha’a evoluiu ao longo de quatrocentos anos sob o Império Otomano, que reivindicou a terra para propósitos de taxação sobre as terras miri. Começou no vilarejo, não no estado, como um sistema de propriedade coletiva da terra para cultivadores que compunham a maioria da população. Esforços para instalar a propriedade privada pela reforma otomana, ou pelo mandato britânico ou pela ocupação sionista encontraram resistência persistente nos “vilarejos da musha’a Palestina afora”. “Não havia necessidade para reforma agrária, que se comprovou destrutiva para a economia do fellaheen. Anulou as vantagens inerentes ao sistema e, de forma surpreendente, facilitou a transferência de terras de árabes para judeus”.

Samuel Bergheim escreveu uma descrição da musha’a para o Fundo de Exploração da Palestina. De uma família de banqueiros europeus, Bergheim comprou propriedade na Palestina com títulos aceitos pelos otomanos. “Quando meu irmão e eu compramos as terras de um vilarejo de seus habitantes, as autoridades turcas nos reconheceram como proprietários livres (freeholders) e nos deram títulos de propriedade, de acordo com leis aprovadas pelo falecido sultão vinte anos atrás. Não foi assim com os habitantes da aldeia, pois quando fomos porcionar a terra em lotes para cultivo, os aldeões protestaram e se recusaram a aceitar o novo acordo. Eles só aceitariam o regime de musha’a”.

A família Bergheim comprou as terras em 1872; em 1885, Peter Bergheim foi assassinado. Gezer também foi local de um dos primeiros encontros entre o colonialismo (o assentamento Bergheim) e a resistência camponesa à imposição do código de privatização da terra de 1858, no qual o sistema comunal (musha’a) foi enfraquecido. O assassinato de Peter Bergheim — banqueiro, colono e arqueólogo amador — por camponeses de Abu Shusha destacou a relação dinâmica entre arqueologia, colonização agrícola europeia e desapropriação de terras dos camponeses.

Noura Alkhalili explica que a musha’a era “uma cultura levantina de terra comum”. Ela descreve a forma como as aldeias de musha’a, bens comuns agrários, foram transformadas em um ambiente urbano depois da violência do mapeamento, titulação, compra e venda que lançou as pessoas em cidades e acampamentos depois da expropriação de suas terras. A transição foi catastrófica: os fellaheen se tornaram refugiados e os refugiados viraram proletários. O processo foi impulsionado pelos Acordos de Oslo de 1993 e 1995, que se apoiou na propriedade privada neoliberal e nas relações de mercado e nas teorias neoliberais do “desenvolvimento econômico”. Na Palestina, diferente da Inglaterra, a espoliação foi mais do que cercas e sebes — incluiu a construção do muro de dez metros de altura na Cisjordânia entre 2005 e 2008 depois da Segunda Intifada.

Como a diáspora dos fellaheen preservou as noções de reciprocidade, obrigação e ajuda mútua, cujas origens se encontram na musha’a e cujos valores repousam com a família, dentro do coração da comunidade e no peito de cada pessoa? Como esses princípios foram transferidos do campo para a cidade? O que os refugiados carregam em seus corações além dos poucos pertences na carroça ou no carro? Que práticas nutrem e carregam a sabedoria coletiva de sobrevivência e resistência. Comida, habitação, segurança, saúde e água são necessidades imediatas.

Noura Alkhalili, que fez trabalho de campo em 2013, escreveu: “Os fellaheen na Palestina não precisavam de fronteiras para identificar seus lotes. Oliveiras e figueiras eram pontos de referência convenientes a todos na comunidade”. Ela também explica como tanto casas como árvores podiam se tornar propriedade privada. Árvores também eram mnemônicas, lembretes, sobreviventes. Sobre John Berger, o crítico de arte com um amor de Tolstoi por camponeses, é dito que “as nespereiras e amoreiras de Ramallah o lembravam do tempo antes da Nakbah², quando era uma cidade de lazer e tranquilidade”. “Enquanto a grama crescer” é o dito entre os indígenas de Turtle Island³. Les Levidow explica que uma resposta palestina à sistemática reengenharia da terra e à espoliação dos árabes foi o plantio “não autorizado” de oliveiras. A azeitona é um cultígeno primordial para a Palestina, ao menos nos últimos oito mil anos.

Para Alkhalili, “a resistência fellaheen de baixo, contra o projeto britânico de cercamento e mercantilização da terra, foi sobre a proteção dos bens comuns.” Ela relata que o campo de refugiados de Shu’faat de Jerusalém Oriental e como empreiteiros palestinos constroem arranha-céus em terra de musha’a para impedir israelenses de usá-las para construir muros de separação. Ela se refere à “invasão silenciosa do ordinário”, ou seja, a vinda de ambulantes e pessoas sem teto. “Cercamentos por baixo são o que acontece quando subalternos sem propriedade invadem os bens comuns.” Eles também dão passos para privatizar a propriedade: “um processo de formação de classe ocorreu, conectado à apropriação individual das terras de musha’a”, o que coloca a pergunta: “É uma forma de submissão ao sistema capitalista e colonial dominantes?” Ela continua, “enquanto, em partes do mundo, vemos movimentos ativistas e indígenas buscando reivindicar os bens comuns da propriedade privada, o oposto acontece na Palestina”.

Em 1895, Theodore Herzl, autor de “O Estado Judeu” e pai fundador do sionismo, confidenciou em seu diário “nós precisamos desapropriar gentilmente a propriedade privada atribuída a nós…”. Em “A Muralha de Ferroa” ensaio de 1923 de Jabotinsky, ele, como Herzl, comparou o projeto sionista às desapropriações dos colonos ingleses e americanos. 80% da terra árabe foi tomada desde 1948. Entre os métodos usados nessa espoliação está a escavação de poços artesianos para abastecimento de água. Um terço do abastecimento hídrico de Israel é bombeado da Cisjordânia. O sistema hidrológico doméstico, municipal, agrícola e industrial é controlado por uma empresa de água israelense.

Noura Alkhalili é uma testemunha próxima e escrupulosa da transformação urbana da musha’a sob condições de ocupação hostil. Gary Fields, por sua vez, traz um espelho histórico para nossas reflexões. Seu estudo se divide em três partes — cercamentos ingleses, a conquista dos indígenas americanos e a colonização da Palestina. São os três “casos” de cercamento. As ideias e práticas inglesas migraram para a América; a linhagem dos cercamentos ingleses é a mesma dos palestinos. O remapeamento e construção de fronteiras estão conformados à modernização e ambição territorial dos donos de terra. “Em cada caso, sistemas de propriedade da terra derivados dos costumes e imbuídos de direitos de uso coletivo e formas cooperativas de gestão foram atacadas pelos modernizadores”. Em três partes, Fields analisa o cercamento na Inglaterra, a conquista e construção de reservas para povos indígenas na América do Norte e, finalmente, descreve o caso palestino, o colonialismo sionista. Capitalismo, colonialismo e nacionalismo são os termos oferecidos para generalizações a partir dos “casos”. Mapas, leis e cercas são as técnicas de aquisição e posse. Para a Inglaterra foi o lucro, na América se tornou a raça e para a Palestina foi a religião. “Esses três estudos de caso de expropriação oferecem caminhos distintos para a modernidade”, ele escreve. É possível dizer que os três casos representam três faixas da mesma estrada indo para a mesma direção: “modernidade”, perdição.

Fields emprega o termo de Edward Said — “geografias imaginárias” — como primeiro passo na colonização, do qual mapas e uma paisagem serão realizadas. O direito à terra é um direito de exclusão, delimitando o meu do seu. Sob os otomanos, os agricultores palestinos criaram um “sistema único de propriedade comunal da terra conhecido como musha’a e que deu controle aos aldeões sobre práticas de cultivo e distribuiu os riscos da agricultura de subsistência”.

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Com o colapso do Império Otomano ao fim da Primeira Guerra Mundial, os britânicos receberam o mandato de governar a Palestina. A infame declaração de Balfour prometeu ao banqueiro Rothschild “um lar nacional ao povo judeu”. Sob o mandato britânico, 70% das terras das aldeias ainda existiam sob o regime da musha’a. A política agrária inglesa era hostil à musha’a. Ernest Dowson, engenheiro e inspetor, defendia o cercamento e repartição das terras comuns. Ele completou a primeira pesquisa cadastral da Palestina. Em 1925, seu “Estudo Preliminar da posse da terra na Palestina” representa uma continuidade dos defensores clássicos da destruição da propriedade comum da Inglaterra como Arthur Young, John Sinclair e William Blith. Os britânicos conseguiram pesquisar e titular 25% das terras da Palestina. Esse enfraquecimento da musha’a foi uma vitória do movimento sionista, já que, agora, a terra poderia ser comprada e vendida. Dowson liderou o trabalho de registro de terras, ele liderou os cadastros, os pesquisadores responsáveis pelo cadastramento e registros de extensão, valor e propriedade. Esse trabalho pavimentou o caminho para a colonização sionista.

Na Comissão Peel de 1937, a musha’a foi identificada com um desincentivo em face da resistência obstinada. Os árabes consideravam a musha’a como uma “salvaguarda contra a alienação” nas palavras da Comissão. Talvez seja essa relação com a terra em face do Império Britânico que deu aos fellaheen sua fama mundial, expressado na palavra árabe sumud, inabalável.

A luta é pela libertação e não por um novo Estado. “O projeto de mapeamento cadastral do Mandato Britânico (…) buscou centralizar o poder e a tomada de decisão fora das mãos da população indígena (…) o maior obstáculo: a musha’a, um sistema equalizador de gestão de terras controlado diretamente pelos camponeses”. “A musha’a se caracterizou pela redistribuição periódica dos lotes agrícolas entre camponeses que reivindicavam parcelas da terra”. “A prática contínua de negociar e redistribuir terras colocava ênfase nas relações, responsabilidade e nos laços afetivos entre os aldeões”. A cerca, a sebe, o muro, o fosso, o arame farpado, a concertina, os tijolos e o bloco de concreto se tornaram meios e símbolos desse amplo cercamento. Essa arquitetura se juntou à lei (criminalização dos costumes) e à cartografia (teodolito, corrente) para destruir comunidades baseadas nas terras comuns. Na Inglaterra, essas terras eram um “desperdício”, na América eram terras “selvagens”. Na linguagem do Império Romano, o latim, havia a terra nullius ou o vacuum domicilium. Crianças buscavam “lotes vagos” para suas brincadeiras, jogos e esportes. Em contraste com o vernáculo, cujo gênio foi o poeta pobre e plebeu profundo John Clare, dois séculos depois se reproduziu esse cercamento na Palestina, que nem de “terra de ninguém” nem “domicílio vago”. A azeitona, o figo, o damasco, a videira, a romã, a noz, amêndoas, laranjas e limões são frutas da Palestina. 70% da terra arável no momento da Nakbah ainda retinha seu caráter de musha’a.

A aldeia de musha’a lembrava a aldeia inglesa na tomada de decisão e alocação de recursos coletiva, frutos da agricultura de campo aberto e conjunto de direitos comuns. A terra na Inglaterra assumia diversas formas: a campina, as florestas, pântanos, charnecas, colinas e terras altas, assim como terras aráveis. Cada uma tinha características ecológicas particulares e também modos distintos de apropriação costumeira. O mundo conhece o processo graças à literatura inglesa. Robinson Crusoe (1719) é o texto clássico do individualismo, cercamento, posse e conquista. O poeta radical inglês William Blake, no ápice do movimento revolucionário contra opressores e cercadores, que buscavam em nome do lucro e do comércio (“melhoria” eles chamavam) fechar os campos abertos, escreveu que “criar uma pequena flor é o trabalho de eras” e também “melhoria faz estradas retas, mas as estradas tortuosas sem melhoria são os caminhos do gênio”. O direito inglês a vagar está relacionado com o direito palestino ao retorno. O cercamento traz ódio porque significa expropriação, empobrecimento, despovoamento, migração forçada, escassez, nostalgia, tristeza e trauma. A cerca viva materializou o cercamento, bem como a estrada reta.

Por meio da luta, a musha’a será transformada. Vestígios de mutualidade persistem hoje, mesmo em meio à cidade e aos campos de refugiados, mesmo depois da violência da guerra, espoliação e privatização da terra. A violência acompanha a espoliação. Ernest Dowson as comparou aos cercamentos parlamentares do século 18. Balfour, em seu diário, comparou a colonização da Palestina à espoliação dos Sioux ou dos Lakota, sobre os quais hoje aprendemos com Nick Estes e com as Nações Vermelhas, levantando o grito mundial “Devolvam a Terra!” (“Land Back!”).

Os povos indígenas da América do Norte cultivavam plantas com três resultados principais: 1) milho se tornou o principal alimento entre as “três irmãs” (milho, feijão e abóbora), 2) as mulheres cuidavam desses cultivos e 3) as aldeias se tornaram a unidade básica da sociedade. Esses resultados foram enfraquecidos por “um discurso de melhoria da terra e de direitos de propriedade — suplementado por noções de selvageria e racismo — que se instalou na paisagem (…)” um tabuleiro de xadrez de limites municipais e de condados dentro dos quais os povos indígenas foram cercados nas reservas. “A maior descoberta de Enclosure é a influência duradoura da ‘melhoria da terra’ como inspiração ideológica da paisagem e como motor de processos de cercamento e tomada de posse da terra”. Mapas, leis e cercas são técnicas de aquisição e posse. Para a Inglaterra, a melhoria da terra significava lucro. O que “melhoria” significou?

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Plebeus na Inglaterra, assim como os indígenas americanos foram retratados como “selvagens”. Como tais, eles pertenciam a locais distantes (Índia, América, África) em tempos longínquos (A.C, neolítico, feudal). Para Arthur Young, o teórico e primeiro cronista compreensivo do cercamento, plebeus eram “os godos e vândalos dos campos abertos”, ligando plebeus da metrópole com os povos indígenas do mundo na interpretação etapista da história humana e seus estágios levando à civilização ou modernização. Da mesma forma, ligou plebeus e povos indígenas contra o progresso econômico, “melhoria” ou “desenvolvimento”, os jargões dos planejadores, políticos e formuladores de políticas em todo canto.

Um estudo mais antigo falava de “estágios”, não “casos”. Qual a diferença? Fields não fala sobre trabalho ou sobre a reorganização continental da força de trabalho, nem de dinheiro e do investimento global para maximizar o mais-valor. A burguesia produziu teorias da mudança histórica com determinismo econômico ao descrever a história humana em quatro ou cinco “estágios” de crescimento econômico. A History of America de William Robertson, publicada em 1777, no meio da guerra de independência, desenvolveu a teoria dos estágios do “progresso” do homem da selvageria à civilização. Escoceses como Adam Ferguson e Adam Smith produziram teorias sociológicas e econômicas para essas etapas — comunismo primitivo, pastoralismo, agricultura e comércio — ou, em outras palavras: selvageria, barbárie, feudalismo e capitalismo. Em cada uma delas era fundamental a relação tecnológica com a terra, o patriarcado e a diferenciação de classe. Coletar ervas, caçar na floresta, cultivar o solo e mineração subterrânea até que a quantidade sobrepuja a qualidade em um processo demoníaco de acumulação. Era uma teoria poderosa, mas ilusória, que propunha tanto determinismo como inevitabilidade. A dinâmica de mudança de um estágio ou modo de produção para outro ocorria como uma revolução.

Em 1878, Vera Zasulich tentou assassinar o prefeito de São Petersburgo e foi condenada à prisão. Três anos depois, em 1881, o czar Alexandre II foi assassinado na mesma cidade. Um mês antes disso, Vera Zasulich se deparou com uma “questão de vida ou morte” para Karl Marx. Poderia a comuna rural (obshchina) se desenvolver em uma direção coletivista ou socialista ou estaria ela predestinada pelas leis da história a desaparecer como uma estrutura arcaica? A obshchina é apenas uma fase passada ou uma semente do futuro? A resposta de Marx foi interessante. Ele escreveu quatro rascunhos e uma carta para Zasulich. No final, ele enviou uma resposta curta, mas com uma conclusão importante: “o estudo especial que fiz da comuna rural russa, incluindo uma busca por materiais de fontes primárias, me convenceu de que ela é fulcral para a regeneração social da Rússia”. Os quatro rascunhos nos dão uma ideia interessante desse “estudo especial”.

Na sua carta para Zasulich, Marx citou partes d’O Capital, cujo primeiro volume seria traduzido pela militante para o russo. Ele declarou que “a expropriação do produtor agrícola, do camponês, do solo é a base de todo o processo”. Marx escreve sobre “as voltas da história” ou as “terríveis vicissitudes” que caracterizam tais transições. Na carta a Vera Zasulich, ele faz uma distinção poderosa entre a “comuna arcaica”, quando a residência se dava em uma casa comunal, como com os Haudenosaunee, quando o parentesco e membresia comunal se sobrepunham consideravelmente e a produção era coletiva, diferente da comuna agrária onde o campo aberto era dividido em faixas de propriedade individual. O trabalho e a terra eram coletivos na comuna arcaica, enquanto um dualismo prevalecia na comuna agrária, com uma mescla entre elementos coletivistas e individualistas. Marx avisou Zasulich que “para salvar a comuna russa, é necessária uma revolução russa”. A visão de Marx da história não é linear, mas espiral: o passado não está morto e, de fato, sequer é passado. Donde “o retorno de sociedades modernas e uma forma superior de tipos ‘arcaicos’ de propriedade coletiva e produção”. Ele, assim, conecta os comuns à comuna.

Para nós, esse também é o dilema da Palestina. Novamente, os eventos nos forçam a pensar em alternativas à privatização. Novamente perguntamos: o que é comunismo? Para uma definição, voltamos para Karl Marx, que escreveu, em A Ideologia Alemã (1845), “Nós chamamos de comunismo o movimento real que abole o presente estado de coisas”. Ele coloca a prática à frente da teoria. Ele diz isso em um contexto que tornou parte da humanidade em uma massa sem propriedade, carente e destituída. Ainda assim, ela existia no plano histórico-mundial. Anos depois, na Crítica do Programa de Gotha, composta em 1875 e publicada em 1891, ele insistiu que “cada passo do movimento real é mais importante que dúzias de programas”.

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Protestos contra a propriedade privada não começam com Marx. Eles são globais e a história está cheia deles. Aqui vão três exemplos. Em 1794, na colônia mais antiga da Inglaterra, a Irlanda, William Drennan (1754–1820), fundador do United Irishmen, e que cunhou o termo “ilha esmeralda”, escreveu, como parte de sua defesa da secessão: “Ao ligar a herança mais antiga de todo o povo a certos pontos redondos de terra, se dá à localidade uma liberdade inconsistente com sua natureza: transforma legisladores em agrimensores e agrimensores em legisladores; estendendo as linhas de demarcação onde em um lado de empilham privilégios e de outro o direito comum é pisoteado”.

Ou, à época da colonização de Massachusetts, o sachem indígena Massasooit, dos Wampanoag perguntou “o que é isso que vocês chamam de propriedade? Não pode ser a Terra, já que ela é nossa mãe, nutrindo todos seus filhos, animais, pássaros, peixes e todos os homens. As florestas, os riachos, tudo nela pertence a todos e é para o uso de todos. Como pode um homem dizer que ela pertence apenas a ele?”

E temos a pergunta de George Jackson, de dentro do sistema de encarceramento em massa Amerikkkano: “Quem causou mais mortes? Mais trabalho? Mais tempo de prisão? Quem é o último em todos os aspectos da vida social, política e econômica?”

Idealistas buscando reformas em geral se voltam para o estudo da vida no planeta antes da privatização da propriedade ou antes do domínio do mercado e do dinheiro. A terra é a fundação mais antiga da sociedade humana e o ponto de partida de todo bioma. Nem Estados, nem nações, nem imperium (guerra, soberania), nem dominium (fronteiras, propriedade). Ao invés disso, omnia sunt communia.

A musha’a evoluiu com a política agrícola miri dos otomanos, que abrangia 87–90% das terras agrícolas do império. Por volta de 1914, no fim do Império Otomano, a musha’a respondia por 70% das terras totais. Ela constituía 55% da terra cultivada em 1922; 46% em 1930; 25% no fim do Mandato Britânico. Ainda assim, apenas um quinto das terras da Palestina haviam sido divididas em unidades demarcadas. Em 1947, os assentamentos judaicos ocupavam 8% da superfície terrestre na Palestina. No mesmo ano, só 20% das terras haviam sido assentadas com título. Em 2017, os assentamentos e infraestrutura sionista cobriam 85% do território.

Não foi só a lei que os colonizadores modernos pegaram do Império Romano. Virtudes militares, honra, força, sofrimento, feridas, perda de membros, cegueira foram exaltadas. Uma gama de punições militares astutas passou adiante. Era um assunto patriarcal, ensinar os jovens a morrerem, a obedecer ao Estado, a estuprar a mãe Terra, supremacia branca e seus poderes embranquecedores para afetar o discurso, a iconografia e as estruturas de conhecimento. “Branquitude” nasceu da cromática da alquimia como embranquecimento. Foi isso que o jovem Marx quis dizer quando escreveu “para ter seus pecados perdoados, a humanidade só precisa declará-los o que realmente são” (1843). O pecado, aqui, é o roubo da terra. Perdoar esse pecado é retornar a terra. Mas, como disse Calibã:

Esta ilha é minha; herdei-a de Sycorax, a minha mãe

Roubaste-ma

Não era Sycorax do Levante? Esses são restos que passam de um império europeu a outro. Sim, verdade, mas igualmente fundamentais são as mulheres, cujo trabalho dá a vida, preserva a comunidade, é mantenedor da lareira, responsável pela reprodução do humano.

Quando era dito pelos romanos que os proletários só serviam para fazer filhos, eles nos deram a palavra “proletário”, compreendida por todo o mundo. Ela se refere a mulheres, especialmente a “tias” e avós, irmãs e sororidade. É por isso que em Zulu se diz “toque a mulher, toque a pedra”. As mulheres fazem a comunidade humana — cozinhando, cuidando, criando ambientes seguros, mantendo a memória. Em qualquer sistema-mundo, seja ele chamado de selvageria, barbárie, feudalismo ou capitalismo, encontramos mulheres responsáveis por sua reprodução. Isso é, agora, mais verdadeiro que nunca. A família estendida, ou hamula, era a base para a comunidade da aldeia e para a musha’a.

Gary Fields distingue imperium de dominium, seguindo uma distinção criada pelo direito romano. Imperium se refere à extensão territorial da soberania real e o dominium à posse de terras dentro dos limites imperiais. Um coloca uma bandeira no chão, o outro ergue uma cerca. Imperium e dominium podem ser paralelos à diferença entre descoberta e colonização. O que se oculta é que a transição de um para o outro e os meios de fazer essa transição: guerra, doenças, estupro e rapinagem! Governo do porrete — maridos agredindo esposas, mestres chicoteando escravos, oficiais chicoteando marinheiros etc. Os habitantes prévios à “descoberta” são mortos, “sumidos” ou, se sobrevivem, se transformam em sombras alienadas do que foram, envenenados pelo álcool, desonrados e envergonhados, estupradas, destinados a morrerem cedo.

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O sionismo cristão é tão antigo quanto o capitalismo. Data do século 16. Na Inglaterra, alcançou um ápice importante nos tempos de Oliver Cromwell, o comandante da revolução burguesa inglesa. O secretário de Cromwell argumentava que os judeus precisavam ir para a Palestina. Ao mesmo tempo, depois de centenas de anos de exclusão, os judeus foram autorizados a voltar para a Inglaterra de Cromwell. Parentesco e comércio conectavam os judeus sefarditas de Amsterdam ao Mediterrâneo e ao Atlântico. Cromwell se afirmava como um soberano imperial, pronto para competir com outras potências imperiais como a Holanda. Cromwell era um comandante burguês que exercia seu poder por meio da guerra. Ele reduziu os obstáculos ao cercamento dos campos, invadiu a Irlanda, derrotou a Espanha e capturou a Jamaica. E ele era um sionista. Isso era uma jihad protestante, feita em nome de Yahweh.

Quando Cromwell cortou a cabeça do rei e inaugurou o estado capitalista, ele indicou Walter Blith como supervisor das terras confiscadas dos monarquistas. Blith resumiu seus anos de confisco com um golpe linguístico típico do duplipensar de Orwell. Em 1649 ele publicou o The English Improver (o aprimorador inglês, tradução livre). Em 1652 ele publicou o The English Improver Improved (aprimorador inglês aprimorado), que ligava o confisco, roubo, e privatização das terras comuns ao progresso humano. Roubo de terras se torna aprimoramento agrícola! Assim, protestar contra esse roubo é perder tempo. Resistir é se opor ao futuro. O roubo das terras é para seu próprio bem. Esse truque se comprovou essencial para o desenvolvimento capitalista, o credo do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional. Gary Fields diz: “não só a musha’a foi um obstáculo para o desenvolvimento agrícola local e aquisição sionista, mas também representava um uso não-produtivo de recursos naturais, inconsistente com as noções europeias de “desenvolvimento” e “melhoria”.

Como Marx destacou, “Cromwell e o povo inglês tomaram os discursos, paixões e ilusões do Velho Testamento para sua revolução burguesa”. Parte dos conselheiros próximos de Cromwell entrou em contato com judeus holandeses e defenderam o reassentamento de judeus na Inglaterra (eles haviam sido banidos do país desde o século 13). A escatologia milenarista (o messias e sua segunda vinda), a competição comercial imperialista, o comércio de escravos do Atlântico e a colonização de Massachusetts se combinaram. Dois batistas, em janeiro de 1649, fizeram uma petição para a readmissão de judeus: “que essa nação da Inglaterra, com os habitantes dos países baixos, sejam as primeiras a transportar os filhos e filhas de Israel em seus navios para a terra prometida a seus pais Abraão, Isaque e Jacó como herança eterna”. Sionismo cristão é inseparável da fera imperial, da revolução inglesa até o presente.

Se, seguindo Fields, compararmos os três casos como três “atos” em uma peça, o enredo unificador está faltando. Os “casos” têm relações históricas uns com os outros: os cercamentos ingleses levaram à guerra e colonização da Irlanda e à criação das colônias na América do Norte, cada uma delas uma pilhagem em busca de novas mercadorias e novos meios de expropriação e escravização do trabalho. Na medida em que a riqueza gerada pela erradicação das paisagens indígenas norte-americanas (ferrovias, as grandes planícies) levou a uma demanda insaciável por petróleo, a sede por recursos também se esconde sob os apetites vorazes no Oriente Médio (o petróleo, os oleodutos, sionismo). Essa foi a revolução burguesa (1649) cujos efeitos estão no nível da revolução Francesa (1789) ou russa (1917). Não se poderia substituir aqui “etapa” por “caso” e resolver o problema; a questão da interpretação demanda uma compreensão do cercamento como característica necessária da expansão do sistema de relações capitalistas.

Em nível teórico, capitalismo, colonialismo e nacionalismo estão conectados, mesmo que o imperialismo seja inerente ao capitalismo, que obedece à lei fundamental que impulsiona todo o sistema “Acumulem! Acumulem! Isso diz Moisés e os profetas”, como dizia Marx. A libertação nacional é inerente à resistência ao colonialismo, embora possa ser facilmente acomodada ao capitalismo, conforme explicado por Fanon.

É assim que o proletariado é criado. Nas partes da Palestina dominadas pelo arrendamento de terras “os cultivadores camponeses são uma classe sem recursos (…) e quase todos endividados, segundo o relatório de 1891 do Fundo de Exploração da Palestina. Essa dívida, inevitavelmente os leva a ceder seu título à terra e, assim fazendo, os camponeses “se tornam Sherîk-el-Hawa (parceiro do vento)”. É possível imaginar como um poeta interpretaria essa figura de linguagem árabe. A mãe terra expulsou seus antigos cultivadores, que agora se dispersam pelo mundo, como sementes, para se juntar a vários outros na diáspora atmosférica. E há muitos ventos nos quais prestar atenção: a harmata, que sopra do Saara sobre a África Ocidental; o El Niño, que sai do Pacífico para crescer e se tornar furacões. O poder desses parceiros do vento vai se refletir na produção cultural anglo, dos murais pintados em restaurantes para lembrar os clientes de casa às expressões sublimes do vento como A Tempestade de Shakespeare ao Typee de Herman Melville.

Os proletários não têm um puto no bolso. Não tem terra, nem relações comunitárias, nenhuma subsistência nem salário. É por isso que parceiros do vento são tão importantes: como proletários eles carregam consigo a musha’a, inabaláveis. Sumud. A rocha. Se postar de pé com confiança, relaxado, firme — palavra semelhante a “reto”, que combina virtude social com a postura física do corpo. Como retidão, é associada com verdade, probidade e princípio. É nada menos que a transição da espoliação à exploração, o ponto de partida, segundo Marx, do modo de produção capitalista. Esse rasgo, essa separação, “quebra irreparável” ou “fissura metabólica”. Nessa transição da espoliação à exploração, existe uma pausa. Ed Emory, após viajar com trabalhadores migrantes do Mar Vermelho, observou: “essas são pessoas que esperam — esperam sua vez, esperam na fila, esperam em grupos, olhando pelas frestas dos portões das docas, esperam algum burocrata notar sua existência. Sempre esperando”. Eles são “o povo da terra”.

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Voltando ao momento presente na Palestina, nós devemos adicionar, à formulação “x²” (exploração e espoliação) uma sombra para cada uma de suas partes: exploração + extermínio, espoliação + extração. O genocídio perpetrado pelos sionistas em Gaza se junta à extração de terra e petróleo. x² se torna x³ ao adicionar as desculpas (excuses). A devastação, genocídio, envenenamento e pilhagem da classe dominante são encobertos por uma série de desculpas institucionalizadas: desenvolvimento econômico, modernização, melhoramento social. segurança pessoal e salvação religiosa. Cada uma dessas desculpas tem seu discurso, sua militarização, suas configurações acadêmicas, racismo e política. Como toda desculpa, sua face se apresenta plausível, talvez até normal até que sua sombra emerja como ocorre em Gaza para todo o mundo ver. O sistema global de império, guerra e escravidão só levou a um sistema planetário de inundações, fogo, veneno e doença. Com essas múltiplas catástrofes, nós antecipamos a destruição do sistema terra.

Embora o profeta Miquéias tenha prometido uma figueira para cada um de nós (Miq 4:4), vamos deixar profecias arcaicas de lado e concluir com uma nota revigorante de etimologia. Gaza era um centro têxtil e deu seu nome a uma tessitura muito útil: a gaze, o tecido de algodão, seda ou linho usado como curativo para ferimentos graças a sua capacidade de absorver o sangue e agir como barreira para sua perda.

Nós já passamos do ponto sem retorno. No entanto, nós estamos em um ponto de virada. David Graeber e David Wengrow escrevem “estamos vivendo o que os gregos chamavam de kairós, o tempo certo para uma metamorfose dos deuses, dos princípios e símbolos fundamentais”. Esses cronistas da primeira formação social mundial da humanidade chamam esse de “tempo certo”, o tempo para a transição para outra formação social. O capitalismo generificado, racializado, imperialista arruinou quase tudo. Quem ou o quê entre nós vai trazer a metamorfose demandada?

Para responder a essa pergunta, precisamos olhar para a origem de tudo. A musha’a da Palestina pode guiar nossa transição de um mundo de perspectiva desastrosa para outro: a comuna e os comuns. E sua relação? Lembremos de Marx, respondendo a Vera Zasulich: “não é mais uma questão de um problema a ser resolvido, mas de um inimigo a ser derrotado”.

Traduzido a partir de: https://www.counterpunch.org/2024/03/01/palestine-the-commons-or-marx-the-mushaa/

  1. IWW — Industrial Workers of the World, os wobblies, é um sindicato internacional de trabalhadores da indústria de origem americana e de grande influência no começo do século XX. Duramente reprimidos pelo Estado americano nos Palmer Raids, em 1920
  2. Nakbah — Catástrofe, desastre em árabe. Designa o êxodo palestino de 1948, ocasionado pelo estabelecimento do Estado de Israel e pela expulsão em massa de palestinos de suas terras
  3. Forma como povos nativos da América do Norte se referem à América do Norte e Central.

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Pedro Silva

Brasileiro. Pesquisador em RI. Curioso incurável. Traduzo uns textos aí.